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100 anos do karatê-Do no Japão

 

                             FOTO: Gichin Funakoshi, o homem que institucionalizou o Karate-dō.

100 Anos do Karate-Dō no Japão


Artigo nº 6, 03 de maio de 2022.


INTRODUÇÃO


É bem difundido na história do Karate-dō que foi o mestre Gichin Funakoshi (1868-1957) que oficialmente apresentou o Tōde [1] aos japoneses, em Tóquio, Japão [2].

No entanto, em consequência de Gichin Funakoshi acabar vinculado tão somente ao estilo sistematizado por seus discípulos, o Shōtōkan-ryū, esse feito acabou se diluindo e não mais teve o significado histórico de que se faz merecedor.

Este artigo visa homenagear os 100 anos da institucionalização do Karate-dō entre os japoneses, feito que permitiu à arte se espalhar pelo mundo, e também contextualizar esse mesmo acontecimento na história geral do Karate-dō.


O INTERESSE DOS JAPONESES PELO TŌDE


O Governo Meiji (1868-1912) havia anexado o frágil Reino de Ryūkyū em 1872, passando a eliminar sua cultura que era fortemente influenciada pela China.

Em 1890 o serviço militar japonês foi imposto aos jovens uchinānchu [3]. Neste período crescia a animosidade entre Japão e a China, motivando um movimento belicista empreendido pelo Japão.


A historiografia relata que foi o belo porte físico dos jovens uchinānchu, talhado na prática do Tōde, que levou um inspetor da Prefeitura de Kagoshima [4], Shintarō Ogawa, a inspecionar os núcleos escolares de Okinawa, assistindo apresentações de Tōde que foram levadas a efeito por Ankō Itosu (1831-1915) [5]. Voltando ao Japão, o inspetor elaborou um relatório positivo do Tōde ao Ministério da Educação (Monbushō), balizando assim o ensino da arte nas escolas de Okinawa.

Com a vitória dos japoneses na Primeira Guerra Sino-japonesa (1894-1895) surgiu os primeiros heróis uchinānchu, entre eles Kentsū Yabu (1866-1937) e Chōmo Hanashiro (1869-1945), ambos práticos em Tōde e alunos de Ankō Itosu. Coube a esses mestres o pioneirismo do ensino da arte às crianças de Okinawa, sob a tutela do venerável Itosu. A Kentsū Yabu também lhe foi incumbido o recrutamento dos jovens uchinānchu para o serviço militar.

Todo esse movimento despertou a atenção da Marinha Imperial Japonesa, inicialmente com o Capitão Yashiro Rokurō (1860-1930), que aportou em Okinawa e assistiu uma apresentação de Kata [6], e depois sob o Almirante Dewa Shigetō (1856-1930), que chegou a enviar doze de seus homens à Okinawa para treinar Tōde durante uma semana.

O Tōde saía assim do anonimato e fazia-se perceptível pelo exigente povo japonês, especialmente no que dizia respeito às suas artes marciais. Naquela época, o órgão regulador japonês para as artes marciais nipônicas modernas (Gendai Budō) era o Dai Nippon Butokukai. Com as últimas aproximações em torno da arte marcial da Prefeitura recém-incorporada, o Butokukai quis vê-la de perto e convidou a Prefeitura para apresentar seu Tōde no Butokusai, o tradicional Festival de Artes Marciais realizado na Meca da arte marcial japonesa, a cidade de Quioto.

A Prefeitura de Okinawa achava-se abandonada politicamente pelo Governo Japonês e tinha grande interesse em chamar a atenção para isso. Um elemento cultural como o Tōde bem poderia ser esse elemento. Para não correr riscos com a natural “aversão chinesa” que os nipônicos tinham pelos uchinānchu, escolheram um mestre em Tōde que fosse extremamente culto e falasse o idioma japonês fluentemente. Este homem era o Professor Gichin Funakoshi.

Em 25 de maio de 1917 Gichin Funakoshi foi designado para a primeira apresentação oficial de Tōde aos japoneses no Butokusai de Quioto. Foi acompanhado do mestre Shinkō Matayoshi (1888-1947), um hábil no armamento de Okinawa (Kobudō).

Não se sabe ao certo qual o motivo que impediu que a arte, naquele momento, se institucionalizasse no Japão. De qualquer forma, seria preciso um novo movimento nesse sentido.


A PRIMEIRA EXIBIÇÃO ATLÉTICA NACIONAL


A nova oportunidade ocorreu no ano de 1922.

Durante dois meses, no período de 30 de abril a 30 de junho, aconteceu no bairro Ochanomizu, em Tóquio, a Primeira Exibição Atlética Nacional. O agora aposentado Professor Gichin Funakoshi foi novamente (e pelos mesmos motivos) o escolhido.

Não se sabe em qual (ou quais) dias Gichin Funakoshi se apresentou, contudo, o registro de sua apresentação numerou um público de 350 pessoas, sendo tudo coberto pela imprensa.

O sucesso de sua apresentação resultou em inúmeros convites para novas demonstrações a públicos mais privados, como Associação Judicial, Departamento de Educação Japonesa, Associação Imperial de Educação, Academia Militar de Toyama, Academia Militar Preparatória, Família do Marquês Shō (antiga realeza de Okinawa que agora vivia em Tóquio com títulos honoríficos), entre outras.

Contudo o convite mais significativo foi do mestre Jigorō Kanō (1860-1938), fundador do Jūdō, para apresentar o Tōde no instituto Kōdōkan a uma seleta plateia de alunos do instituto e mestres de Jūjutsu.

Para a apresentação Gichin Funakoshi convidou um uchinānchu que se achava em Tóquio cursando a universidade. Era Shinkin Gima (1896-1989), um praticante de Tōde do ensino escolar de Okinawa.

Ao fazer essa apresentação Gichin Funakoshi recebeu uma faixa preta do estoque do Kōdōkan, tornando-se com isso o primeiro faixa-preta em Karate-dō da história [7].

As apresentações tornaram-se um sucesso tão substancial que gerou mais convites de demonstrações e Gichin Funakoshi foi instado a lecionar em Tóquio, abrindo mão de retornar à Okinawa. Instalou-se então em um dormitório para estudantes uchinānchu situado no bairro Koshikawa, chamado Meisei Juku, onde passou a residir e organizou suas aulas no auditório da instalação [8].

A partir de então Gichin Funakoshi passou a adaptar o Tōde para atender as exigências do Dai Nippon Butokukai. Contava para isso com o apoio de importantes membros seniores daquele órgão governamental, como o próprio Jigorō Kanō, Hakudō Nakayama (1872-1958), um renomado mestre de Kendō, Hironori Ōtsuka (1892-1982) e Yasuhiro Konishi (1893-1983) [9], estes últimos seus alunos.


A POSTURA ISOLACIONISTA DE OKINAWA


Enquanto Gichin Funakoshi arrostava praticamente sozinho as exigências do Dai Nippon Butokukai, que era na época o único órgão regulador das artes marciais nipônicas, os mestres de Okinawa continuavam trabalhando na institucionalização local do Tōde, aparentemente sem se importar, ou considerar, o que ocorria no Japão neste sentido.

Em 1918, ainda com a presença de Gichin Funakoshi, foi organizada a primeira associação do Tōde da história, chamada Tōde Kenkyūkai (Associação de Estudos das Mãos Chinesas). No ano de 1923, após a mudança de Funakoshi para o Japão, foi fundado em Naha um clube de Tōde, o Tōde Kenkyū Kurabu (Clube de Pesquisa das Mãos da China). Essas primeiras organizações acabaram se fundindo em 1925, originando o Okinawa Tōde Kenkyū Kurabu.

Em 1929 Kenwa Mabuni (1889-1952) [10], um grande impulsionador da institucionalização do Tōde em Okinawa, deixou a ilha para ir residir em Osaka e lá trabalhar pela institucionalização da arte. Mabuni era um bom amigo de Funakoshi e preferiu se fixar em Osaka para ampliar a divulgação da arte marcial de Okinawa no Japão.

Havia muitos conflitos entre Funakoshi e os mestres de Okinawa por causa de suas adaptações feitas sob os interesses japoneses expressos pelo Dai Nippon Butokukai. Um dos principais conflitos foi a alteração, no ano de 1929, do nome da arte para Karate-dō (Caminho das Mãos Vazias) em substituição ao legado chinês do nome Tōde (Mãos Chinesas; Mãos da China).

Ainda em meados da década de 1930 os mestres de Okinawa não aceitavam as alterações promovidas por Funakoshi e seu grupo japonês. Isso só mudou com uma importante ocorrência.

No ano de 1936 reformas ministeriais da educação excluiu do currículo escolar a prática do Tōde. Pior, permitia sua realização como uma forma de ginástica que poderia ser ministrada por professores de educação física, estes não necessariamente mestres em Tōde.

A comoção que essa medida causou levou os mestres de Okinawa a se reunir no dia 25 de outubro daquele ano.

Com a presença de autoridades, inclusive do Butokukai, os mestres decidiram por adotar as adaptações que Gichin Funakoshi já tinha levado a efeito no Japão, aceitando o novo nome da arte, o uniforme para prática, o sistema de graduação e outros detalhes, além da criação de uma associação para promoção da arte, fundada no ano seguinte sob o nome de Okinawa-ken Karate-dō Shinkō Kyōkai (Associação para a Promoção do Caminho das Mãos Vazia da Prefeitura de Okinawa).

Foi a partir daí que ocorreu uma maior unificação da arte.


OS IDEAIS DE FUNAKOSHI


Gichin Funakoshi imaginava o Karate-dō como uma arte única, abrangente em sua diversidade, mas desprovida de denominações ou escolas.

Logo que novos estilos foram surgindo, pela natural assimilação dos japoneses e dissenções em seu próprio grupo [11], Funakoshi teve que testemunhar novos estilos de Karate-dō que ele não reconhecia como tais.

No Festival de Artes Marciais (Butokusai) de 1938 ele lamentaria a inclusão de escolas das quais ele “nunca ouvira falar”, fundadas por “alegados mestres de Jūjutsu”. Nas demonstrações ele aborreceu-se com o fato que o “assim chamado Karate” apresentado “era muito diferente do Karate” que ele conhecia. Gichin Funakoshi considerou mesmo “um problema sério que assedia o Karate” a “predominância de escolas divergentes”.

Ainda assim o próprio Funakoshi reconheceria que apesar de nunca ter denominado seu estilo, alguns de seus alunos o chamavam de “Shōtōkan-ryū”. Contudo, no final de sua vida, reiterava: “já ouvi até mesmo pessoas atribuírem a mim e a meus colegas a denominação de escola Shōtō-kan, mas me oponho firmemente a essa tentativa de classificação”.

Após a derrota japonesa e a ocupação americana do Japão, no ano de 1949 os alunos seniores de Gichin Funakoshi fundaram o Nihon Karate Kyōkai (Associação Japonesa de Karate), mais conhecia pela sigla em inglês JKA (Japan Karate Association). Funakoshi, com seus 81 anos, teve um cargo honorário na organização.

A ideia inicial foi que essa “associação japonesa” abarcasse a totalidade do Karate japonês. Porém, não havendo mais um órgão governamental regulador (como era o Dai Nippon Butokukai) [12], passou a existir uma autonomia para que cada nova escola fundasse sua própria agremiação. Em consequência a JKA manteve apenas o grupo Shōtōkan entre seus membros. Outros alunos de Gichin Funakoshi também não desejaram fazer parte da JKA e acabaram por estabelecer suas próprias “Escolas Shōtō” como Tomosaburo Okano (1922-2003) e seu Kenkojuku ou ainda Shinkin Gima (1896-1989) e seu Gima-ha Shōtō-ryū.  A própria JKA se dividiu por divergências internas e os alunos mais antigos de Funakoshi, inclusive sua família, firmaram o grupo Shōtōkai.

Ao prefaciar a segunda edição do seu livro Karate-Dō Kyōhan, em 1956, no alto de seus 88 anos e seis meses antes de seu falecimento, Funakoshi deixou uma observação nostálgica:

“Em consequência da desordem social que se seguiu ao final da Segunda Guerra Mundial, o mundo do Karate se dispersou, bem como muitas outras coisas. Independentemente do declínio do nível técnico durante essa época, não posso negar que havia momentos em que eu me achava dolorosamente desapontado ao me tornar ciente do estado espiritual quase irreconhecível para o qual o mundo do Karate havia se voltado, diferente do espírito que prevalecia no tempo em que apresentei pela primeira vez o Karate e comecei a ensinar. Embora alguns possam afirmar que essas mudanças são apenas o resultado natural da expansão do Karate-dō, é evidente que esse resultado não pode ser visto com alegria, mas sim com apreensão”.


CONCLUSÃO


100 Anos do Karate-dō no Japão!

A uma primeira vista pode não se considerar essa data com a devida importância. É preciso entender que se Gichin Funakoshi não trabalhasse pela institucionalização do Karate-dō no Japão, o mais provável é que o Tōde se mantivesse como um elemento cultural e local, o que demandaria muito mais tempo para se propagar.

Não é exagero afirmar que na própria Okinawa da atualidade o surpreendente e rentável “turismo do Karate” se deva ao esforço de Funakoshi. Naquele passado as lideranças de Okinawa foram praticamente obrigadas a aceitar a institucionalização do Tōde e, ainda assim, somente depois de mais de uma década em que Funakoshi estabelecia uma arte sistematizada e regulada. Toda essa regulamentação, enraizada no ambiente universitário, permitiu o ressurgimento no pós-guerra e sua revitalização como esporte de luta.

Com a profissionalização de instrutores pioneiramente formados pela JKA, o Karate-dō ganhou o mundo abrindo as fronteiras internacionais para os outros estilos.

A consequência disso é que se hoje temos a comodidade de possuir um instrutor de Karate em nossa cidade, devemos isso a abnegação e destemor do mestre Gichin Funakoshi.


PARA SABER MAIS:


Eros José Sanches,

autor do livro “Ikken Hissatsu, As Origens do Karate-Dō”.

Texto extraído e adaptado da mesma obra.

Vendas pelo WhatsApp 42 98863 0710.


NOTAS


[1] Nome primitivo do Karate-dō.

[2] Neste artigo usaremos os termos “japonês” ou “japoneses”, assim como “Japão”, para nos referir aos habitantes e às coisas das ilhas principais japonesas, também conhecido como Hondo (本土). Isso se faz necessário para diferenciarmos o Japão da ilha de Okinawa, que era um reino independente até 1872, quando então foi incorporada pelos japoneses.

[3] Habitantes da ilha de Okinawa (Uchinā)

[4] Kagoshima é uma Prefeitura da Ilha de Kyūshū, a ilha mais ao Sul do Japão. Historicamente, desde a invasão Satsuma (um clã da Ilha de Kyūshū) em 1609, que Okinawa sofria influência desta região japonesa. Em 1872, quando o extinto Reino de Ryūkyū tornou-se um feudo pertencia justamente à Prefeitura de Kagoshima até finalmente ser elevado à Prefeitura de Okinawa em 1879.

[5] Ankō Itosu é o responsável pela sistematização e institucionalização do Tōde no currículo escolar de Okinawa no início do Século XX. Ele teve muitos discípulos, entre eles o próprio Gichin Funakoshi.

[6] Kata são formas ou exercícios coreografados de sequências técnicas organizadas dentro de um sentido de aplicação.

[7] Essa citação histórica pertence ao historiador Andreas Quast. É interessante explicar que o Tōde não possuía sistematização alguma de ensino, muito menos uniforme e graduações. Todos os mestres da arte deste período possuíam experiência de prática e alguns, como Funakoshi, havia recebido aval de seus mestres para ensinar.

[8] Faz-se necessário ressaltar que desde 1921 já estava no Japão outro importante mestre de Tōde, Chōki Motobu (1870-1944), que vivia em Osaka. Porém, sua mudança foi motivada pela busca de uma vida melhor e não era de seu interesse (e parece nunca ter sido) institucionalizar a arte.

[9] Hironori Ōtsuka e Yasuhiro Konishi, mais tarde, criariam seus próprios estilos de Karate-dō, chamado Wadō-ryū e Shindō Jinen Ryū, respectivamente.

[10] Kenwa Mabuni se manteria no Japão até sua morte e seria o fundador do estilo Shitō-ryū.

[11] As mais famosas deserções dentro do grupo de Funakoshi foram a de Hironori Ōtsuka e de Yasuhiro Konishi.

[12] O Dai Nippon Butokukai foi extinto em 1946, tendo sido julgado pelas Forças de Ocupação como um órgão belicista. Seu ressurgimento em 1953 não recuperou seu prestígio governamental, impedindo-o de exercer controle sobre as modernas organizações políticas das artes marciais nipônicas.

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